sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Apenas vista o vestido vermelho


Nossa Senhora! Que dia quente fez hoje. Não consegui ficar debaixo do sol quente conversando com as colegas. Estou estatelada aqui nesta cama desde a janta!
Acho graça destes doutores falarem: "Dona, a senhora precisa caminhar, está muito obesa!". Gorda mesmo. Estes médicos não sabem o que é se aguentar em pé. Não são apenas as varizes, os 130kg, a diabetes. Eu aguento 85 anos de vida. Estes médicos leêm milênios de livros mas são estúpidos demais com essa senhora aqui. Não me lembro o sabor de um manjar, há tempos que peço um cigarro para morrer e não me dão. Não posso dar um passo sem que me perguntem o que vou fazer.
Eles deviam ter me conhecido moça, linda, a dançar como uma dama no baile da minha cidade. Coronéis, vagabundos, todos me queriam. Eu, com apreço à boemia, contradizendo meus pais, escolhi um vagabundo que morreu cedo. Devia ter me aguentado, mas a saia já não podia conter as chamas. Casei puríssima e linda... Ainda me lembro da cerimônia, do cheiro das flores do campo, do Padre, das comadres todas muito arrumadas... Aceito! Meu pai chorava o álcool que havia bebido. Coitado! definhou 76 anos de vida curtidas no álcool e nas surras que dava em minha mãe. Esta pobre não teve o mesmo fim, deixou-nos aos 50 anos, triste e morta já.
Mas se eu vestisse aquele vestido vermelho de cetim pegado na cintura, não havia homem nem mulher que não me olhasse. Que será que fizeram com o meu vestido? Será que estão usando? Ficaria ótimo no corpo da minha filha, por isto dei a ela. Amanhã, vou pedir à Maria que me faça uma ligação e peça a minha filha que venha me ver vestindo aquele lindo vestido vermelho.
Ah, mal posso esperar! Vou pedir que venham todos ver este caco, e que tragam um pedacinho de manjar, que não carece mastigar já que dentes não tenho. Vem meu filho, minha filha e meus netos. Acho que tenho seis netos que são as coisas mais lindas do mundo, embora nunca os tenha visto. Vou pedir que tragam as fotos para eu mostrar a estas velhas a formozura que eu era! Ah, que chamem os filhos do mais velho, que há muito não vêm me ver! Devem estar lindos! Coitado! Não pôde ver os filhos crescer! Era tão responsável, e morreu tão cedo!
Não é certo uma mãe ver seu filho deitado em meio às flores com algodão no nariz, frio e imóvel. Não é certo ver meus netos chamando pelo pai na crença de que ele fosse acordar. A minha nora, de tão dopada, não sabia nem o próprio nome. A outra vestindo festa e unutilmente segurando a minha mão como quem tem nojo de mim. Queria ter perdido o lenço para assoar meu nariz naquela pata de cadela! Ah, não! Porquê Deus permite uma mãe enterrar um filho? Não, não é certo! Ver aquele caixão fechando, os homems levando o meu filho pra dentro da cova... Não! Eu devia estar alí! Que caco sou eu que resisti áquela dor e não consigo caminhar sob o sol?
Mas o outro vem! Ele disse que viria, e eu criei homens, não canalhas. Meus filhos têm palavra! Sempre quis ter uma menina, mas só tive dois homens, contudo, os criei como verdadeiros homens! Esse último relutava, tinha tudo que quis e que o outro não teve, mas relutava em virar hommem. Mas homem se tornou! Trabalha, sustenta os filhos, a sogra, a cadela e os cachorros dela! Quando me deixou aqui, bem que disse, era o melhor para mim. tenho aqui as minhas orações, as minhas coleguinhas e meio pão seco todo dia. De que mais eu preciso? Não precisava é destas gentalhas pra me mandar andar no sol! Bando de descarados!
Amanhã vou pedir pra ele vir, como prometeu, vou pedir a Maria que ligue e diga-lhe que venha ver-me enquanto estou viva ainda! Disse que vinha no natal passado, mas mandou vir o pessoal da igreja, que olha agente com cara de dó e acha que sem dente não se come. Não quero que mande ninguém! Quero que venha e sem a cadela de preferência! Amanhã, sem falta!
Vou pedir à Maria e ele virá! Ah se soubesse como estou triste...
Como estou só...
Como tenho saudades dos netos que nunca vi...
Ai, meu Deus, espera um poquinho pra me levar, espera eu dar um beijo na testa dos meus netos, espera eu dizer que os amo...
Pare de chorar, velha caduca! As outras vão notar!
Tola, se desfaz em lágrimas por qualquer coisa! Enterrou um filho, um marido e há dez anos se esqueceu o que é ser feliz, de que vale chorar agora? Tem esperança, sua velha? Tem esperança de que ainda vai ser feliz? Gorda, doente assim? Depende de alguém para tudo. É um estorvo e já passou da hora de morrer! Não merece ser feliz. Não merece e tem esperança? Seu filho não te aguenta a clamar de dor, ele não quer vê-la!
É mentira, por tantas vezes acariciei sua cabeça chorosa quando sentia dores tão pequenas, ele há de vir dar um pedacinho do seu precioso tempo às minhas dores. Vêm hoje! Já vejo o sol nascendo, olhe. Olhe, alguém na porta! Dona Maria, Bom dia!
"Seu filho veio te buscar, ele não quer mais a senhora aqui conosco."
Graças a Deus!, pede para vir que já me apronto! Arrumo minhas coisas num minuto, sinto até vontade de caminhar...
"Pois então caminhe, sem nada. Ele disse que terá tudo novo e não precisará da velharia que tem onde vão morar... disse que se tiver um vestido vermelho, que vista."
Claro que tenho, aqui! Sempre esteve aqui, será que ainda me cabe? Meu filho! Meu filho! Meu Deus! Por quê me deixou?
"Não importa, venha comigo, quero lhe mostrar uma coisa."
Quanto tempo não seguro sua mão, tão forte e mal tratada, é tão bom segurá-la! Meu Deus! Meu filho! Você parece com seu pai, pena você não ter vivido para ver o trapo que ele se tornou...

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