segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Ensainho sobre Saramago


Começa com ir ao oftamologiasta e ler o Ensaio sobre a Cegueira enquanto espera. Alguns durmiam, quase todos bocejavam enquanto a recepcionista chamava cada nome da lista para efetuar o cadastro. As mães chegavam com as crianças e as deixava livres para limpar que limpassem os sapatos nas poltronas de espera, passar as folhas da revista de forma raivosa e gritar quando a moça de branco aproximava-se com o colírio.
Estes fatos me tiraram a atenção da leitura, mas o que mais me distraiu foi a senhora sentada a minha frente. Simples, idosa e dependente da filha. Todas estas características me pareceram assustadoras, se eu estivesse em seu lugar. Ela via que eu lia o livro e devorava suas páginas como se predicessem meu futuro. Mas não estava certo se ela sabia ler o título do livro. Não sei se sabia a importância de José Saramago para o mundo. Que o livro tornara-se um mérito e o mérito tornara-se filme que passou ao seu adaptador uma parcela do mérito que é estar envolvido na obra.
Que mérito afinal podia aturdir aquela senhora? Talvez não soubesse ler e nada importava a ela se eu me interessava por literatura portuguesa moderna ou gibis. Que me valia o tênis que absorve impacto na coluna da marca alemã, meu futuro seria como o dela, de bengala a não aguentar o corpo. Ela, aos vinte anos, talvez nem a sentisse doer como eu sinto.
Eu faço faculdade e estudo muito para garantir meu conforto e acesso. Trabalho, também, num serviço tão burocrático que de forma direta ou indireta contribuo para que aquela senhora dependa da filha. Mas que isto importaria aquela senhora? Dei-lhe um sorriso e ela tocou meu joelho me dizendo para eu aproveitar os dentes com que eu nasci. Se eu a tivesse dito quão complexas são minhas metas e quanto eu me esforço e me privo para atingí-los, ela me mostraria toda sua bangueleza, numa risada sarrista.
Talvez não soubesse ler, não dominasse o conhecimento formal, não conhecesse o conforto e a tecnologia e adorasse a vida como eu nunca fui capaz. Enxergasse de trás das cataratas, muito mais do que eu, detras das minhas lentes High light, jamais pude ver. O quão bom marido um homem pode ser, quão bom filho, quão amigo, quantas doces histórias podemos trocar sem se sentir melhor por isto ou aquilo. Aquela senhora podia enxergar nos seres humanos a humanidade, despida de tudo que criou para o bem e para o mal. Certamente temia a Deus, Ele nos livra de muitas dúvidas e fraquezas.
Ela era como eu, sabia que perdia gradativamente a visão, que certamente dependeria do auxílio de alguém, cujo amor trouxe o fardo de cuidar daquela senhora, como se pudesse ser mais dígno. Eu procurava nos livros, na ciência e na arte, modos de compensar os meus limites e desta forma criar sobre mim uma aura de admiração.
A perspectiva de me tornar aquela senhora, a cada linha do livro, a cada reflexão, se tornava mais aceitável. Ela, na metade final da vida, queria ver os dentes dos netos, a sorrir para suas rugas. Neste sorriso, não há uma só palavra, nenhuma letra, nenhuma ciência ou arte, não há nada de grandioso, de cheio de mérito, de Saramago. Há uma brancura, uma brancura plena que nos deixa a mostra tudo o que somos, uma cegueira branca, como aquela de Saramago, que tornei a ler, com o livro fechado.

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